NA MANHÃ DE 23 DE FEVEREIRO, UMA QUINTA-FEIRA em que o Brasil inteiro já contava as horas para o início do Carnaval, um grupo de executivos chegou à sede da gigante de alimentos BRF, na zona oeste de São Paulo, para uma reunião que, de festiva, não teria nada. Subiram ao 5a andar, para a sala 5F. Na mesa, a cabeceira estava reservada para Abilio Diniz, desde 2013 presidente do conselho de administração da empresa. Quem foi convocado para aquela reunião tinha razões para temer pelo próprio emprego. Pouquíssimas pessoas sabiam, mas a BRF anunciaria ao mercado, no fim daquela quinta-feira, o pior resultado de sua história. A reunião começou às 9 da manhã e acabou quase 10 horas depois. Consultores e executivos apresentaram a Abilio e a Pedro Faria, presidente da companhia, seus planos para tentar reverter a situação. As 20h42, o prejuízo foi anunciado. Pela primeira vez, a empresa, dona das consagradas marcas Sadia emPerdigão, perdera dinheiro num ano – 400 milhões de reais. Nem o mais rabugento investidor estava esperando um resultado tão ruim.
A cúpula da BRF pretendia aproveitar os dias seguintes para virar a página. Dois vice-presidentes foram demitidos, um comitê de emergência foi criado, a estratégia estava sendo revista. Mas a fase está mesmo braba. Primeiro, a empresa teve de lidar com uma ameaça de greve geral dos funcionários, já que não houve distribuição de lucros – até porque lucro não houve. Pedro Faria enviou a mais de 100 000 funcionários um vídeo em que tentava acalmar os ânimos. A exposição causada pelo video, gravado de forma caseira no celular e distribuído por WhatsApp para meio mundo, foi tamanha que Faria se equilibrou naquela linha tênue que separa a coragem e o haraquiri. As ameaças de greve continuaram. Finalmente, no dia 17 de março, a empresa foi uma das citadas numa operação policial que apurava, entre outros crimes, a suspeita de comercialização de produtos estragados e de suborno de fiscais (veja boxnapág. 88). Um gerente e um diretor da empresa, Roney dos Santos e André Baldis-sera, foram presos pela Polícia Federal, e houve buscas na casa do vice-presidente de integridade corporativa, José Roberto Rodrigues. Nos dias seguintes, a BRF defendeu-se das acusações. Até o fechamento desta edição crescia a percepção de que a Polícia Federal havia escorregado feio, sobretudo na definição do que era ou não prática regular na indústria de alimentos. Mas o estrago estava feito. União Européia e China suspenderam a importação de carne brasileira, e as ações da BRF caíram cerca de 10% em dois dias.
Em meio a uma recessão como a brasileira, em que empresas quebram às centenas, perder dinheiro é coisa da vida. Mas, no caso da BRF, o que torna tão constrangedora a combinação do prejuízo inédito com a operação policial é o contraste em relação à expectativa que os atuais chefes criaram ao assumir o comando há quatro anos. Em fins de 2012, um grupo de acionistas liderado pela gestora Tarpon juntou-se a Abilio Diniz para dar as cartas na BRF. Trocaram tudo, começando pela cúpula da companhia. Nildemar Secches, executivo que liderou a lendária virada nos resultados da Perdigão nos anos 90, deixou a presidência do conselho, dando lugar a Abilio. As mudanças na diretoria vieram em seguida. A Tarpon e seu grupo criticavam o que consideravam a lentidão da administração da BRF
– um gigante tímido que poderia ser transformado num líder global, menos dependente do vaivém das commodities, mais moderna, mais antenada com os desejos de um consumidor em transformação, mais rentável. Investidores compraram a ideia de que as ações, na época ao redor dos 40 reais, valeriam pelo menos 100 reais em quatro anos.
O PowerPoint, como se sabe, aceita tudo. Poucas vezes se viu, na história brasileira, uma reestruturação tão ambiciosa quanto a imposta pelos acionistas que assumiram a BRF em 2013 – verdadeiro transplante cultural numa das maiores empresas do país. O que tornava o projeto ainda mais audacioso era o fato de que, a rigor, estava tudo bem com a BRF. Não se tratava de uma empresa em crise, endividada, na rua da amargura, em busca de um salvador. Tarpon e Abilio pretendiam, isso, sim. transformar o bom em ótimo. O PowerPoint podia fazer sentido. Mas, na hora de trazê-lo para a áspera realidade, a coisa desandou até chegar à total confusão em que a empresa está metida. Hoje, depois do prejuízo histórico e da Operação Carne Fraca, as ações da BRF valem cerca de 35 reais. Quase 20% menos, portanto, do que valiam quatro anos atrás. Nas últimas semanas, EXAME ouviu 32 pessoas, entre atuais e ex-executivos da BRF, concorrentes e analistas, para traçar a história da crise da BRF – e o que a empresa pretende fazer para sair dela antes que se agrave ainda mais.
MARCHA LENTA
A BRF é resultado da fusão de duas rivais históricas: as catarinenses Sadia, criada em 1944, e Perdigão, fundada em 1934. Na crise de 2008, a líder Sadia afundou em prejuízo por ter feito apostas no mercado financeiro e foi comprada no ano seguinte pela concorrente, formando uma companhia de 22 bilhões de reais de faturamento. Após um tortuoso processo de aprovação no Cade, órgão federal de defesa da concorrência, um grupo de acionistas começou a achar que a integração da Sadia com a Perdigão acontecia em marcha lenta, enquanto a margem de lucro encolhia. A gestora de fundos Tarpon, acionista da Sadia desde 2002, tornou-se a maior sócia privada da BRF e começou a expor sua insatisfação com a velocidade do gigante re-cém-formado. Dois sócios da Tar-pon, Pedro Faria e Zeca Magalhães, eram conselheiros da empresa, mas precisavam de um nome novo para convencer a maioria do conselho e dos acionistas a mudar a gestão. O empresário Abilio Diniz, que vivia às turras com seu então sócio no varejista Pão de Açúcar (o francês Casino), embarcou no projeto. Comprou cerca de 3% das ações da BRF e, com o apoio da Previ, fundo de pensão dos funcionários do Banco do Brasil, assumiu a presidência do conselho no lugar de Nildemar Secches em abril de 2013. Foi quan- do começou a primeira fase de uma revolução em duas etapas.
Como não se faz revolução sem derramar sangue, o grupo de acionistas convidou Cláudio Galeazzi para assumir a presidência da empresa. Galeazzi, um especialista em dar choques de gestão em companhias que precisam reduzir custos, chegou chegando. Nos primeiros meses, cortou quase 1000 funcionários, trocou os titulares de dez das 12 vice-presidências e mudou toda a estrutura industrial. Nas palavras de Abilio, a BRF era uma empresa "empurrada pela área industrial" e que precisava ser "puxada pela área de vendas, com o consumidor dizendo o que quer". Para pôr o novo modelo em prática, no dia 11 de fevereiro de 2014, Galeazzi demitiu mais de 150 executivos, com o objetivo de reduzir as posições hierárquicas entre o chão de fábrica e a presidência. A margem operacional da BRF passou de 10,4%, em 2012, para 15,4%, em 2014. Foi quando começou a tumultuada sucessão de Galeazzi. Pelo plano original, ele ficaria até o fim de 2015 no cargo. Seu sucessor seria Pedro Faria, então presidente da área internacional – que, antes de assumir a empresa inteira, faria uma espécie de "estágio" no comando do mercado interno. Mas diferenças de visão entre Abilio, Magalhães e Galeazzi acabaram acelerando a sucessão. Os conselheiros, Abilio à frente, estavam encantados com o trabalho de Faria na área internacional. Galeazzi, que temia o avanço da concorrência no mercado brasileiro e achava que Faria não poderia prescindir do período de experiência na operação local da BRF, deixou o cargo em dezembro de 2014. Antes de sair, enviou uma carta a conselheiros e executivos. De acordo com um executivo que teve acesso ao conteúdo do e-mail, ele concluiu o texto de maneira um tanto profética. "Lamento profundamente o que ocorreu.
mas prefiro interromper um sonho na raiz do que ter de viver um pesadelo na minha gestão.-" Procurado, Galeazzi não confirmou o conteúdo do e-niail nem quis falar sobre a atual situação da BRF.
"TARPONIZAÇÃO"
Aos 40 anos, Pedro Faria assumiu o comando da BRF no dia 2 de janeiro de 2015. Empolgado com o sucesso do primeiro ano da nova gestão, Faria começou a segunda fase da reestruturação da BRF – um processo que hoje é conhecido internamente como "tarponiza-ção-ambevização" da companhia. Criticado por ter pouca experiência naquele setor para assumir um cargo tão complexo, Faria decidiu se cercar de gente como ele. Demitiu Sylvia Leão, executiva de confiança de Abilio, num sinal de independência em relação ao presidente do conselho, e limitou suas interações com ele. Abilio, então encantado com o perfil trabalhador de Faria, deu corda ao protegido, apesar de certo incômodo com o time que estava sendo montado. Faria trouxe da Tarpon Rodrigo Vieira – que administrava 120 funcionários na gestora e assumiu a área de RH de uma empresa com 110 000 empregados. José Alexandre Carneiro, também da Tarpon, assumiu a vice-presidência de finanças da América Latina e depois foi transferido para a operação brasileira. Para tocar a área de marketing no Brasil, escalou Flávia Faugeres, executiva com 20 anos de experiência em empresas como a cervejaria Ambev e a rede Burger King. Em menos de quatro meses, Flávia passou de vice-presidente de marketing a diretora-geral de Brasil, segundo cargo mais importante da companhia. Era sinal de que Pedro Faria queria instalar na BRF o estilo "faca nos dentes, sangue nos olhos" que tanto lucro deu aos acionistas da Ambev.
A BRF continuava crescendo no mercado internacional, anunciando parcerias em Singapura, adquirindo marcas e fábricas em países como Tailândia, Argentina e Catar. As exportações, que respondem por metade das vendas da BRF, não eram motivo de preocupação. O desafio todo se concentrava no mercado interno, onde a BRF sofria com um problema impensável alguns anos antes – um concorrente peso-pesado. Em junho de 2013, a Marfrig, enrolada em sua gigantesca dívida, vendeu sua subsidiária de alimentos, a Seara, para o grupo JBS por 5,9 bilhões de reais. O JBS foi talvez o mais acabado exemplo da política de "campeões nacionais" dos governos petistas, em que um punhado de empresas recebeu fortunas do BNDES para crescer. Foi uma mudança de patamar na concorrência que pouca gente dentro da BRF compreendeu. O grupo JBS fatura cinco vezes mais do que a BRF, e seu bolso fundo ajudou a comprar espaço para a Seara no mercado interno. Em fevereiro de 2014, a Seara transformou a jornalista Fátima Bernardes em garota–propaganda. O sucesso da campanha publicitária da mulher moderna – que trabalha, é mãe, cuida da casa e comanda a cozinha de forma prática – foi instantâneo. E a JBS aproveitou as demissões da BRF para angariar pessoal – mais de 100 funcionários foram para a concorrente, levando não só conhecimento do setor mas também planos da própria BRF. Gilberto Tomazo-ni, chefão da Seara, foi presidente da Sadia de 2004 a 2009.
15% em 2016. Enquanto isso, a participação da BRF só fez cair, categoria após categoria. No último ano, a venda de embutidos diminuiu de 41% para 36%, e a categoria de frios foi de uma participação de 63% para 59% em 2016.
O confronto agora direto com a Seara tirou a BRF do prumo. Numa tarde no fim de abril de 2015, Flávia Faugeres convocou os funcionários da sede da empresa para uma reunião surpresa – na qual não podiam entrar com o telefone celular. A diretora estava enfurecida com a coincidência de campanhas entre a Sadia e a Seara, que haviam criado peças publicitárias para as linhas de presunto, lingüiça e frango ao mesmo tempo (a Sadia lançava e a Seara contra-atacava com uma campanha já pronta). "Vou chamar a polícia se o traidor não pedir demissão", disse Flávia, segundo relato de funcionários. A empresa chegou a demitir funcionários com as pessoas sentem a pressão da chefia e temem as conseqüências. Aqui não tinha esse efeito e acabava até virando piada", diz um funcionário da empresa. Algumas das broncas mais desbocadas de Flávia foram gravadas e espalhadas pelo mercado em mensagens de Whats-App. No início de 2016, Flávia decidiu deixar a BRF (procurada, ela não deu entrevista). Assumiram Leonardo Byrro, oriundo da Tarpon, e Rafael Ivanisk, ex-Inbev.
Uma série de coincidências felizes fez o início dos problemas no mercado interno passar despercebido em 2015. Naquele ano, as vendas totais aumentaram 11%, e o lucro disparou 46% (foi de 3 bilhões de reais). A súbita desvalorização do real, a queda do preço do milho para o menor patamar em uma década, o aumento no preço da carne bovina e um surto de gripe aviária nos Estados Unidos fizeram da BRF uma estrela no merparentesco com empregados da concorrente, mas sempre negou que esse fosse o motivo do desligamento. Em dezembro, dois computadores foram roubados na sede da empresa em São Paulo, e ambos pertenciam à equipe de marketing. Uma pessoa se registrou com documento falso na portaria do prédio e foi diretamente aos computadores que queria roubar. A BRF fez boletim de ocorrência e uma investigação interna, sem conclusão. Segundo membros de sua equipe, o estilo de Flávia não funcionou na BRF, e a perda de mercado para a concorrência foi minando sua liderança. "Na Ambev,
cado internacional. A empresa conseguiu vender mais fora do país do que no mercado doméstico. Na conferência com analistas, Abilio Diniz elogiou a gestão. "O Pedro está fazendo um trabalho fantástico", disse. A ação alcançou 70 reais. Ninguém sabia, claro, que seria ladeira abaixo a partir dali.
Chegou 2016 e os problemas começaram a aparecer – e de forma acelerada. Primeiro, a conjuntura mudou: o dólar caiu, o milho subiu, a gripe aviária desapareceu dos Estados Unidos e o preço da carne bovina caiu. A diretoria financeira havia mudado a política de compra de milho, tida como
conservadora e cara demais. Essencialmente, a BRF. maior com-pradora de milho do Brasil, tinha o equivalente a um mês de estoque daquele que é seu maior insumo. Em busca de eficiência financeira, esse estoque diminuiu – segundo executivos de fornecedores ouvidos por EXAME, para poucos dias de consumo. Essa mudança foi feita às vésperas de um repique médio de 70% no preço do milho, o que deixou a BRF nas mãos das tradings especializadas em grãos. Para que seus frangos não morressem de inanição, a BRF teve de correr os mercados de Argentina e Paraguai para comprar milho com preço nas alturas. Um concorrente chamou a nova política de compras da BRF de "insanidade típica de quem só pensa na planilha e esquece que existe um mundo real lá fora". Essa e outras trapalhadas na política de compra de insumos causaram prejuízo de 600 milhões de reais no resultado da empresa em 2016. A BRF nega que tenha ficado perto do limite de estoque e diz que estava 20% acima do ano anterior (mas não discrimina o que foi alta do valor de estoque por preço). A perda irritou investidores que haviam sido atraídos pelo discurso de que a BRF se tornaria menos dependen-
te dos ciclos das commodities. No ano, o volume de venda de alimentos processados caiu 5%, enquanto o volume in natura aumentou 7%.
O jeitão financista começou a chamar a atenção de investidores, que notavam uma crescente obsessão da BRF por seu Ebitda. "Houve uma piora na qualidade da transpa-rência contábil, como forma de melhorar o Ebitda. Não é nada ilegal, está na regra, mas vale lembrar que o Ebitda é métrica que ajuda a determinai" não só o valor das ações como também o pagamento de bônus", diz um analista de ações. Um gestor da Skopos comentou numa postagem no Twitter que a empre-
sa fazia mágica no Ebitda com criatividade financeira. Os analistas se referem a uma mudança no tratamento dado, no balanço, a gastos com fornecedores. Até 2013, todos os gastos eram lançados no balanço como custos, o que diminuía o Ebitda. Aos poucos, a BRF foi lançando parte desses gastos na linha de despesa financeira (que não impacta o Ebitda). No levantamento de três gestores ouvidos por EXAME, essa linha foi de 40 milhões de reais em
2014, aumentou em 2015 e ficou entre 100 e 150 milhões de reais em alguns trimestres de 2016, gerando impacto positivo no Ebitda da companhia. A EXAME a BRF diz que "segue a regra contábil vigente", conforme manda a Comissão de Valores Mobiliários.
"PERDIDÃO"
E claro que os investidores esta-riam pouco interessados em práticas contábeis e políticas de estoque de grãos se os resultados da BRF estivessem impressionando positivamente. Mas a empresa estava sofrendo. A deterioração da economia brasileira impulsionou as vendas de marcas mais baratas. A BRF decidiu enfrentar a recessão de peito aberto. No primeiro semestre, fez o maior repasse de preços de sua história, de quase 20%, já sabendo que isso poderia atrapalhar as vendas – o volume caiu 10% no primeiro semestre. Pelo calendário acertado com o Cade, novos itens poderiam ser lançados em 2016 com a marca Perdigão, e a BRF continuou patinando. Segundo varejistas ouvidos por EXAME, o consumidor ainda identificava a Perdigão como marcapremium, não a marca de combate desenhada (ou desdenhada) pela nova gestão da BRF. A conseqüência é que os supermercados subiram os preços dos produtos Perdigão, embolsando a diferença e colocando as duas marcas da BRF numa competição direta pelo mesmo cliente. A Perdigão acabou roubando mercado da Sadia e, para o consumidor que queria itens mais baratos, concorrentes como Aurora e Pif Paf serviram bem. A BRF perdeu duas vezes: a Sadia vendeu muito menos e a margem melhor da Perdigão ficou com os supermercados. Enquanto isso, o posicionamento da Sadia também foi alvo de críticas internas. Para se destacar, a marca cortou 30% do sódio dos alimentos. É, hoje, aquela cujos produtos têm menos sódio. Mas a BRF esqueceu de alardear isso ao consumidor – só notou quem leu as embalagens. A outra frente para aumentar as vendas da Sadia foi o contrato fechado, em
2015, com o chef inglês Jamie Oli-ver. Para assinar uma linha de produtos com a BRF, Oliver fez várias exigências, principalmente em relação ao tratamento dado aos animais. Os frangos precisam ser criados com luz natural e dispor de um espaço mínimo de metragem para que não fiquem confinados, por exemplo. Das exigências, a única que a BRF não cumpria era a criação de um espaço "lúdico" para as aves, onde pudessem ciscar à vontade. Numa entrevista, Zeca Magalhães, da Tarpon, disse que a empresa tinha criado um "plavground de frango". Os produtos de Oliver, no entanto, não emplacaram conforme a expectativa: pouca gente captou a proposta da linha de alimentos congelados "prontos para cozinhar". O investimento total no lançamento foi de 50 milhões de reais. "O consumidor acabou não entendendo por que pagaria tanto por aqueles produtos", afirma a executiva de uma agência de publicidade que atende a BRF. De 2013 (quando a JBS comprou a Seara) até agora, a participação de mercado da Sadia caiu de 37% para 25%, e a Perdigão aumentou de 15% para 21% – crescimento considerável, mas insuficiente para cobrir a perda total da BRF, de 52% para 46%.
O posicionamento de Perdigão e Sadia no mercado interno ficou a cargo de Rodrigo Vieira, executivo que veio da Tarpon para assumir a área de RH e depois foi deslocado para a vice-presidência de marketing e inovação. Vieira é um personagem típico do processo de "tar-ponização" pelo qual a empresa passou. Vegetariano, segundo quatro colegas, e sem experiência no setor industrial, ele sempre foi visto pelos colegas como peixe fora d"água. Vieira assumiu a estratégia da Perdigão em 2015 e foi apelidado por alguns executivos da empresa de "Perdidão" – o vegetariano cuja função era aumentar as vendas de mortadela (procurado, ele não deu entrevista). As derrapadas custaram caro. Os erros na estratégia e a economia em crise aumentaram o estoque da BRF, e a empresa fez promoções para desovar o estoque, jogando os preços para baixo. Em novembro, lançou uma campanha prometendo que, a cada chester Perdigão comprado para o Natal, outro seria doado a uma família carente. "Claramente foi sobra de produto revestida de ação social", diz um ex-vice-presidente da BRF. A companhia nega que a ação tenha sido por excesso de produto e diz que a campanha começou a ser preparada em junho.
As vésperas do balanço da companhia, divulgado na noite de 23 de fevereiro, muitos analistas já sentiam que havia algo de muito ruim por vir. Havia um cheiro de decepção no ar. O banco Goldman Sachs passou a recomendar a venda das ações, o banco Itaú BBA disse que poderiam cair mais, e o Credit Suisse fez uma revisão radical nas perspectivas. No dia 13 de fevereiro, o banco americano JP Morgan fez um alerta um tanto grave. Enviou um e-mail a investidores informando sobre a posição dos administradores da empresa em contratos de opção de venda da ação, o que parecia ser "uma estrutura de proteção para a desvalorização", segundo o banco (uma apuração interna confirmou que executivos estavam "apostando contra" a ação da própria BRF). Enquanto o mercado estimava um lucro de 28 milhões de reais, o que já seria ruim, a BRF anunciou um prejuízo de quase 400 milhões de reais.
Após o prejuízo, os acionistas da BRF decidiram baixar a bola. Abilio assumiu os erros numa conferência com analistas em que pouco se ouviu a voz de Pedro Faria – evidência de uma mudança na dinâmica interna da companhia. Há três meses, é Abilio quem manda na empresa. O conselho montou um comitê de crise, que, em 90 dias, fará um diagnóstico do que levou a BRF a perder o rumo. Abilio tem dito aos demais conselheiros que a empresa precisa reverter três processos: a "tarponização", a "ambevização" e a "falconização" (referência ao consultor Vicente Falconi, conselheiro e chefe do comitê de recursos humanos da BRF). A "falconização" era expressada no orçamento base zero, prática de gestão tomada famosa na Ambev. O congelamento dos salários dos funcionários nos últimos três anos foi motivo de desentendimento entre Abilio e Falconi, e eles acertaram que o consultor deixará o conselho na próxima assembleia, em abril. A primeira decisão do comitê de crise foi a demissão de Rodrigo Vieira e José Alexandre Borges, vice-presidentes de marketing e finanças, respectivamente. O codiretor responsável pelo mercado interno, Rafael Iva-nisk (ex-Inbev), pediu demissão. Segundo EXAME apurou, os conselheiros consideram que Faria errou, e muito, na escolha de seu time. O comitê de crise vai coordenar a busca por novos vice-presi-dentes de finanças e marketing e pelo novo chefe de Brasil. Uma das posições será ocupada por Alexandre Almeida, que estava na presidência da Itambé. Em tom de brincadeira, um conselheiro diz que um pré-requisito para os candidatos às vagas é não ter nenhuma passagem por Tarpon e Ambev. "Precisamos de gente parruda, com experiência, nomes indiscutíveis", diz esse conselheiro. Faria continua no cargo, mas, segundo executivos próximos, está de "crista baixa" e pede permissão ao comitê para tudo o que faz. Sua eventual saída não seria uma mudança trivial. A Tarpon tem metade de seus recursos alocados em ações da BRF, e o fundo sempre vendeu aos investidores sua capacidade de gerir empresas no estilo "mão na massa". Outra tarefa nada simples será o que fazer com executivos citados na Operação Carne Fraca. Um motivo de embaraço para Abilio é o envolvimento de José Roberto Rodrigues nas investigações. Rodrigues já foi preso numa operação policial, em outubro
de 2007, quando a Polícia Federal desarticulou um esquema de sonegação de imposto de importações da empresa de tecnologia Cisco (ele foi condenado em 2011, recorreu e a condenação prescreveu em 2015). Apesar das críticas à sua nomeação como vice-presidente de integridade, Abilio bancou seu nome. A BRF anunciou que vai contratar uma empresa externa para apurar internamente as acusações de pagamento de suborno a fiscais.
Depois de trocar pessoas, a outra frente do plano é alterar a dinâmica de negócios. Muita coisa que mudou nos últimos anos vai voltar a ser como era antes. A BRF contratou a consultoria Boston Consulting Group para ligar as pontas entre o consumidor e a fábrica. Toda a ideia de ser uma empresa orientada pelo consumidor será sepultada, já que cria distorções na cadeia de produção – grosseiramente, o que fazer com as coxas de frango se o consumidor só pede peito? As estratégias de marketing, que nem sequer eram levadas ao conselho, agora passam a ser olhadas com lupa. A BRF estuda também lançar uma nova marca, de apelo de fato popular. A companhia queria apresentar a nova estrutura aos investidores até o dia 24 de março – mas, como parte de sua equipe está dedicada a enfrentar a crise causada pela operação da Polícia Federal, os planos foram adiados em uma semana. A Operação Carne Fraca também pode retardar os planos de encontrar um sócio para a OneFoods, subsidiária de comida Halal voltada para os países muçulmanos. A OneFoods é hoje um dos maiores ativos da BRF, segundo os bancos, especializada no segmento que mais cresce no setor de alimentação mundial. Conseguir uma boa avaliação de preço para a subsidiária, que pode valer até 6 bilhões de dólares, é crucial. Seria um sinal de que as coisas estão mudando na BRF – mas, desta vez, mudando para melhor.