HISTORINHAS DO BB – Bezerras desmamadas

HISTORINHAS DO BB – Bezerras desmamadas

 

Nem todas as historinhas “escrivinhadas” neste cantinho são passadas  aqui no Espírito  Santo.  Esta de hoje,  por exemplo,  também de cunho verdadeiro, foi arrebatada da coletânea do colega aposentado Waldemar Justino Hemerly, dentre as muitas que ele assistiu de corpo presente.  Mas a que iremos relatar a seguir passou-se no Estado do Amazonas, mais precisamente na jurisdição da agência de Parintins e foi narrada ao nosso colecionador por um colega Fiscal da Creai.

 

Dona Ana Rosa  era uma modesta sitiante na região e dedicava-se, em pequeno porte, à atividade da pecuária leiteira. Tinha lá uma meia dúzia de vaquinhas magras e havia necessidade de aumentar o seu rebanho para fazer face aos gastos  inerentes a essa atividade, especialmente em períodos mais difíceis, como longas estiagens, etc.

 

A localização do pequeno imóvel de dona Ana,  a cerca de 350 quilômetros de Manaus, era o grande obstáculo para que ela conseguisse resultados mais satisfatórios, por conta da grande dificuldade de fazer chegar, até lá, todo e qualquer tipo de assistência, tais como rações balanceadas, vacinas contra a aftosa, carrapaticidas – que era a grande praga da região – enfim um somatório  de adversidades de expressiva monta.

 

Nem por isso dona Ana Rosa se deixava entregar ao desânimo.  Viúva, empreendedora nata, com a única filha em sua companhia, estava sempre a tentar novos desafios, porquanto gostava de colocar à prova a sua têmpera de mulher independente, obstinada e sequiosa de alcançar, um dia, a tão sonhada independência financeira. Disso ela não fazia segredo e estava sempre a contar com a solidariedade da filha Rosalva.

 

Ouvindo pelo rádio – único meio de comunicação a alcançar aquela região – propaganda do governo federal de incremento e auxílio às atividades agropecuárias, não perdeu tempo e procurou a agência do Banco do Brasil mais próxima – no caso, Parintins – a fim de sondar a possibilidade de conseguir algum financiamento, tendo recebido como resposta que, no seu caso, o mais lógico seria fazer uma pequena ampliação no rebanho de gado de leite.

 

Era o retorno que dona Ana estava necessitando para abrir um sorriso e, ato contínuo, deixar ali mesmo, naquela hora, uma proposta para aquisição de l5 bezerras desmamadas, as quais, em menos de um mês, se juntariam às sete vaquinhas já existentes.

 

Proposta assinada, proposta aceita. Dez dias depois, o rebanho de dona Ana já somava 22 rezes, a produção de leite já se fazia sentir e até alguns queijos foram fabricados e vendidos aos botequins da redondeza. Dali pra frente a coisa iria deslanchar de vez  e, mediante um bom controle de gastos e provisionamento para pagar as prestações do Banco, as quais, com a carência, começariam quatro meses após a concessão do crédito.

 

E somente a partir daí o Banco passaria a acompanhar a aplicação do empréstimo contraído, a despeito da grande dificuldade de os prepostos – no caso, os fiscais da CREAI – se deslocarem para aquela região, por motivos mais do que entendíveis, como meios de transporte  precaríssimos (barco a motor, lombo de burro, etc.) e o desafio da grande distância.

 

A coisa fluía normalmente até o momento em que começaram a vencer as primeiras prestações do contrato de financiamento, as quais não eram tão  grandes assim. Qualquer coisa em torno de uns duzentos e cinquenta mensais. Dona Ana Rosa honrou o primeiro, o segundo e o terceiro pagamentos.

 

A partir de então, o negócio deu uma guinada, para baixo. O fenômeno da seca aportou por aquelas bandas, o rebanho emagreceu muito com a falta d’água e de pastagens e os projetos de dona Ana começaram a se desmoronar.  As perspectivas se avizinhavam muito sombrias e tudo isso passou a tirar o sono de dona Ana.

 

Solução à vista, nenhuma, a não ser um “toque” da filha Rosalva: “Mãe, por que a gente não vende isso aqui e se muda para o Pará? Ouvi dizer que as coisas por lá estão bem mais fáceis”. Minhoca na cabeça de dona Ana começou a “formigar”.

 

E não demorou muito, a solução apareceu. Dona Ana “torrou” tudo a preço de banana, vaquinhas magras inclusive e se mandou, de mala e cuia, com Rosalva a tiracolo, para a terra prometida do Belém do Pará. E as prestações do financiamento foram ficando, ficando, ficando.  Até que a coisa ficou feia, de vez.

 

Despontada a irregularidade no financiamento por falta de pagamento das mensalidades contratadas, pra lá se mandou, rapidinho, o fiscal mais experiente de que dispunha o quadro da CREAI de Parintins. Era o Almeida, a quem eram confiadas as tarefas de fiscalização mais difíceis e complexas. Com toda dificuldade conhecida, lá estava o nosso preposto, dois dias de viagem após a “largada” da agência.  “Ô de casa, quero uma palavrinha com dona Ana”.   “Dona Ana não tem mais nada aqui, seu  moço.  Vendeu tudo e se mudou para o Belém. Vai se estabelecer lá”.

 

Os xingamentos que brotaram logo na boca do nosso fiscal, fizeram-no ganhar forças para descobrir o paradeiro de dona Ana, lá no também longínquo Estado do Pará. Como um autêntico cão farejador, meio “mordido”,  não teve dúvidas nem alternativas e “encarou” um “pau de arara” com destino ao novo domicílio de dona Ana, chegando ao Belém após dois dias de intermitente “saculejo”, aquele de fazer “calo” nos assentos menos abundantes.

 

Enfim, Belém do Pará. Sol abrasador pela manhã, chuva à tarde. Nada que pudesse demover o Almeida de sua árdua missão, qual seja a de descobrir o paradeiro de dona Ana.”Tava fácil não, murmurava, consigo mesmo o nosso nobre colega, apelidado na agência, com muita propriedade, de o mais “sherlockiano”  dos fiscais.

 

Numa cidade com cerca de 1.200.000 habitantes, pergunta aqui, pergunta ali e não é que o nosso herói conseguiu uma “dica” certa? Auxiliado por um dinâmico taxista, chegou, enfim, ao paradeiro de dona Ana.  “É ali, moço. Ela e a filha são as novas proprietárias da Casa. Ambiente de primeira. Pode conferir.” Assim falou o taxista.

 

Instado a assim agir e por dever de ofício, colou a boca no interfone e, meio brabo, largou: “Estou procurando por dona Ana Rosa”.  “É ela mesma, entre por favor.”  Nem era preciso citar, mas o estarrecido e incrédulo Almeida estava, a partir daquele momento, em corpo e alma, diante de uma tremenda casa de massagens, luxo pra todo lado, tapeçaria da Pérsia e os mais requintados componentes de um estabelecimento da espécie.

 

“Dona Ana, perdi a fala. Não sei o que dizer nem o que relatar. Quero tomar um banho bem relaxante. Arranje-me apenas uma toalha. Se tiver um cafezinho bem quente, também vou aceitar.” Refeito, retomou a tarefa que o fez à presença de dona Ana e indagou: “cadê as bezerras que a senhora comprou com o dinheiro do Banco?”  “Vendi e troquei por gatas. Se o senhor não fizer conta, vai ver as gatinhas que vão “pintar” hoje aqui à noite, depois das seis da tarde. Sem compromisso.”

 

Compromisso o Almeida tinha, sim, mas era com a sua família lá em Parintins. Completou os apontamentos para elaboração do laudo de vistoria, ajeitou a roupa suja na sua surrada mochila, apertou o cinto e, mais cansado do que nunca, encarou, do próprio bolso, um vôo charter Belém/Manaus. Daí até a sua base, foi um pulo.

 

Notícias de dona Ana ele não teve nunca mais. Teve apenas o cuidado de acompanhar o desenrolar do processo do financiamento das bezerras, cujo desfecho, para sua agradável surpresa, entrou no rol das operações normais  e que estaria por ser encerrado três meses adiante.

 

Fama de cão farejador, o Almeida tinha. O que os seus colegas não tinham era uma boa trena para medir o tamanho do coração desse incansável fiscal da Creai. Depois de um bem elaborado relatório, o Almeida finalizou o texto dizendo que a liquidação do empréstimo só foi possível porque a contratada havia trocado o ramo de pecuarista de leite pelo de proprietária de uma bem montada Casa de Ferragens.

 

Aquiles Paula de Freitas        [email protected]

Vit., out.,31,2007.

 

15/08/2011
- Colaboração - Aquiles Paula
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