Brechas na legislação facilitam golpes contra a Previdência

Vânia Cristino

Que tal pagar uma única contribuição ao sistema previdenciário e conseguir um benefício para toda a vida? Parece uma daquelas propagandas enganosas, mas é o que vem acontecendo com muita freqüência nos últimos tempos. O benefício em questão é a pensão por morte, concedida sem tempo de carência para o dependente legal, geralmente a companheira do segurado. O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que registrou um rombo de quase R$ 43 bilhões no ano passado, detectou que já são centenas os casos de pessoas que nunca contribuíram com a Previdência Social, mas, registram um único aporte, pelo teto, no mês em que vieram a falecer. O parceiro ficou com a pensão.

A fraude legal acontece por uma falha da lei. A Lei nº 8.213, de 1991, acabou com a carência, o que significa que não existe um tempo mínimo de contribuição para o acesso à pensão. De posse dessa informação, muitos segurados se aproveitam da brecha para se dar bem. É o caso, por exemplo, de um segurado cuja esposa adoeceu gravemente. Ela era dona de casa e nunca tinha pago o INSS. O marido pagou uma única contribuição pelo teto — 20% de R$ 3.698,66 — no mês em que a mulher morreu, requereu a pensão e, agora, receberá o benefício pelo resto da vida.

Casos como esse foram relatados a técnicos do governo, na semana passada, durante um seminário que pretendeu discutir o futuro do sistema previdenciário do país. Outro fato levantado foi o de um segurado de 58 anos, aposentado por invalidez. Sua mãe, de 84 anos, nunca tinha contribuído ao INSS. Quando ela adoeceu, ele pagou uma contribuição pelo teto. Como a mãe morreu rapidamente, o filho obteve a pensão alegando dependência econômica. Foi revelada ainda a situação de uma viúva de um servidor público já aposentado. Ela já receberia a pensão derivada da aposentadoria dele. Mas como pagou o INSS pelo teto uma única vez em nome do marido, passou a ter também a pensão da Previdência Social, acumulando os benefícios.

Fragilidade

Os abusos são tão evidentes que a área técnica da Previdência prepara um projeto de lei ordinária para tentar fechar essa brecha legal. A meta é fixar uma carência mínima de 12 meses para o acesso à pensão por morte. O valor do benefício também não seria mais o teto pago pelo INSS, mas uma média das contribuições desses doze meses (1/12).

“É injusto que, para a concessão da aposentadoria, o INSS exija 30 ou 35 anos de contribuição e o valor do benefício a ser pago aos trabalhadores seja pela média, enquanto, para a pensão, sem nenhuma carência, a remuneração seja pelo teto”, disse um técnico da Previdência. O economista Marcelo Abi-Ramia Caetano, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), concorda. “ A mudança é positiva e importante, mas não é suficiente”, observou. Mesma avaliação tem outro especialista do Ipea, Paulo Tafner. “É sempre alvissareiro que alguma coisa seja feita na direção certa”, ponderou.

Tanto Caetano quanto Tafner consideram que a não exigência de um tempo mínimo de contribuição para ter acesso à pensão foi um retrocesso. A carência já existiu no passado e foi retirada pela Constituição de 1988, mais conhecida como Constituição Cidadã. A lei que criou a Previdência Social em 1923, Lei Eloy Chaves, exigia, para a concessão da pensão, que o segurado contasse com 10 anos de contribuição e cinco anos de casado. “Naquela época, a mulher não estava no mercado de trabalho e era, claramente, dependente do marido”, explicou Caetano.

Imoralidade

Na avaliação dos especialistas, a Previdência Social poderia avançar mais e voltar, por exemplo, a exigir um tempo mínimo de casamento ou cohabitação. Tal condição evitaria, em muitos casos, que o benefício fosse pago por décadas — caso do casamento intergeracional, relatado pelo presidente do RioPrevidência, Gustavo Barbosa. O fundo previdenciário do Estado do Rio pagará, por cerca de 60 anos, pensão de R$ 14 mil a uma mocinha de 18 que se casou com um delegado de 72, morto dois anos depois.

Na visão de quem entende de Previdência Social, essas duas condições são importantes, mas não são as únicas. “Infelizmente, não estanca o grande sangramento dos cofres do INSS, mas começa a inibir a imoralidade”, disse Tafner. Como questões que devem ser tratadas em um futuro próximo, ele cita a integralidade da pensão e o fato de ela ser vitalícia, ou seja, durar por toda a vida do beneficiário.

O próprio especialista admite que essas duas regras são mais difíceis de serem mudadas porque qualquer alteração terá que ser feita via emenda constitucional. Foi o que aconteceu, por exemplo, com relação aos servidores públicos. A pensão foi limitada a 70% do que exceder o teto do INSS na última reforma da Constituição. No próprio INSS, a regra anterior a 1988 não era a da integralidade da pensão. “Ou seja, é mais um caso de regra que, em termos previdenciários, foi mudada para pior”, frisou Tafner.

Seringueiros

As pensões não são a única brecha legal que existe na Previdência Social. A fragilidade documental dos benefícios rurais é outra. Técnicos já encontraram pessoas com apenas 47 anos de idade recebendo aposentadoria no campo, quando a idade legal é de 60 anos. Isso acontece porque, para o registro civil, os cartórios não exigem a presença da própria pessoa. Basta um representante legal ou menos do que isso, um conhecido ou alguém que se diga da família. Nada é checado.

Quando a situação passa para o plano jurídico, a fraude é ainda mais difícil de combater. Está ainda em vigor uma lei que deu aos seringueiros da Amazônia, que ajudaram o país com a extração da borracha durante a 2ª Guerra Mundial, o benefício de uma aposentadoria de dois salários mínimos. Passados mais de 70 anos dessa lei, o INSS ainda está pagando aposentadorias e pensões a 14 mil seringueiros. Alguns dependentes têm idade em torno de um ano. A Previdência recorre alegando que não se trata mais de beneficiários da época da guerra, mas a Justiça sempre manda pagar.

Para entender as pensões

COMO É HOJE
» Não têm carência
» A pensão é integral
» O benefício é pago por toda a vida

O QUE ESTÁ EM ESTUDO
» Exigência de um tempo mínimo de 12 meses de contribuição para a concessão do benefício

» Mudança da regra de cálculo para evitar o pagamento integral, pelo teto

O QUE SUGEREM OS ESPECIALISTAS
» Exigência de um tempo mínimo de casamento ou cohabitação

» Voltar à regra de cálculo anterior, quando a pensão representava 70% do valor do benefício, só chegando a 100% se os dependentes do viúvo(a) eram filhos menores ou inválidos

» O benefício deixa de ser vitalício para as viúvas jovens sem filhos, que receberiam um valor menor por um prazo determinado, sujeito à avaliação de dependência econômica

» Pensão vitalícia só para viúvas (os) acima de determinada idade. Por exemplo, 45 anos ou mais

» Restrição à acumulação da pensão com aposentadoria ou outra renda que o beneficiário já possua

 

28/03/2011
- Correio Braziliense
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